Escreve títulos dos livros e nome próprio em letra miníscula, só ele saberá porquê. Isso, ou o seu contrário, dizem menos dele do que aquilo que escreve. Valter Hugo Mãe, 36 anos, escritor, prémio Garrett 1999, prémio Saramago 2007, nasceu em Angola, vive em Vila de Conde.
Lançou um desafio a vários artistas plásticos para lhe fazerem um retrato. Puro exercício egocêntrico?
Juro que não.
A capa do seu livro de poesia ‘Pornografia erudita’ é também um exercício artístico: um nu de Nelson D’Aires. Essa exposição dá-lhe prazer?
A pergunta não é explícita quanto ao facto de ser eu o retratado e estar nu, frontal, na capa; e isso é o que as pessoas vão gostar de saber. Não me sinto exposto. Se me der prazer é por ser uma fotografia de qualidade do Nelson e eu ter podido proporcioná-la de alguna forma.
Explicou que seria uma forma de ilustrar a violência com que havia sido confrontada a sua vida pessoal. Sujeito ao juízo do outro, não pode esse seu nu ser, ele próprio, violento?
Ao juízo do outro? Mas o que há para ajuizar? Sou um homem, tenho dois braços, duas pernas, cabeça, tronco e uma pila ao dependuro. Já não há muita filosofia acerca disto.
Também comporta em si, como Fernando Pessoa, de que é leitor, vários ‘eu’? Algo menos limpo, por exemplo, do seu Baltazar Serapião [”O remorso de Baltazar Serapião”, 2006]?
Somos feitos de energias positivas e negativas. Até dotados de paradoxo. Só assim podemos ter a esperança de não sermos chatos. E o Baltazar também tem coisas boas, por exemplo, sente um amor infinito.
É por isso que cultiva amigos imaginários?
Os meus amigos imaginários são, conscientemente, imaginários. Tenho pena de nunca ter tido daqueles verdadeiros que os miúdos inventam. Desses é que eu queria.
O que conta, nesse paralelo, a Amália Rodrigues, David Lynch ou a Oscar Wilde?
Sou deslumbrado por pessoas e não podia deixar de deslumbrar-me por quem parece andar palmos acima dos outros mortais. Alguns criadores quase tornam desnecessária a existência de Deus. A Billie Holiday, por si só, vale uma religião inteira.
Parecendo-lhe ‘ideia doida’, aceitou integrar com Jorge Reis-Sá a Quasi Edições. Fascina-o o que não é lúcido?
Não. Não bebo álcool, não fumo, não uso drogas. Sou um homem muito lúcido e assim me preservo. Por isso, talvez me fascine por quem me proponha algo que, à primeira vista, parece fora do meu alcance. Gosto de ser desafiado, se houver no desafio um sonho honesto. O do Jorge era muito real.
No entanto, saiu da editora em conflito com ele, dedicando-lhe o poema “O funeral do Jorge Reis-Sá”. Vinga-se sempre de quem o desilude?
Quem lhe disse que saí em conflito com ele? Escrevi uma carta linda, que enviei a dezenas de pessoas, incluindo jornalistas, dizendo o quanto a Quasi havia sido importante para mim e que chegara o momento de pensar em outras coisas. “O funeral do Jorge Reis-Sá” é um poema de saudade, nunca de desprezo. Continuo amigo dele, talvez mais do que ele próprio imagina.
Mas as editoras não parecem ser o seu lado melhor sucedido. A sua “Objecto cardíaco” morreu de enfarte?
As Quasi Edições foram mesmo criadas por mim e pelo Jorge enquanto projecto profissional. Durante os primeiros quatro anos decidi – com ele, claro – linhas fundamentais para o sucesso daquela marca. Muitos dos seus autores de sucesso foram escolhidos e «trabalhados» por mim. Dizer que não tive sucesso como editor é pura maldade. a objecto cardíaco morreu atropelada no trânsito. Sabe como são as estradas de portugal.
Lida bem com os fiascos?
Estou vivo. Ainda não tive o grande fiasco da minha vida. Há sempre a possibilidade de falhar melhor. Até lá vou indo muito bem.
E com os elogios? José Saramago comparou-o a um tsunami. Revê-se nessa espécie de abrupta onda criativa?
Sou um bocado agitado mas, como é mais por dentro, compreendo que custe a crer. Mas sou um bocado abrupto, sim. Também lho juro, se for preciso.
Na escola, as suas redacções já faziam adivinhar o futuro?
Acho que não. Não dava erros. Era bem comportado. Muito discreto. Os professores de português não reparavam em mim. Hoje, eu lembro-me de alguns, mas eles conhecem-me como autor e não imaginam que me tiveram como aluno. Às vezes acho isso frustrante, raios os partam.
Ainda gostava de ser igual a Adolfo Luxúria Canibal?
Vou querer sempre ser como ele, porque é um artista excepcional que se faz a partir de um homem de incrível valor humano. Queria muito ser um excelente artista sem nunca deixar de ser profundamente cumpridor dos princípios mais humanistas.
Têm em comum o curso de Direito. Imagina-se a exercê-lo ou só trocaria arte por arte?
Odeio o exercício do Direito. Adorei fazer o curso. Se me deixarem ganhar a vida com arte fico-lhes muito agradecido e acredito que, esporadicamente, serei feliz.
É verdade que a sua recordação mais nítida do 25 de Abril de 1974 é a criança loura que nunca tinha visto?
Sim. Um rapaz que dizia: «eu cá vou brincar para ali; eu cá estou cansado». Nunca mais me esqueci disto.
E da convulsão real desse dia, que recordação tem?
Da minha mãe a segurar-me de encontro ao peito e de acharmos que uma bala nos mataria. Fomos para o carro e o meu pai conduziu para um lugar onde as pessoas estavam felizes. Mas disso, infelizmente, já não me lembro.
“É como se Deus existisse e quisesse que eu acreditasse nele”. A fé é uma luz intermitente?
É. Quando estou muito zangado não tenho fé e digo coisas muito feias.
É o que o salva ou o que o faz querer salvar alguém?
Não. O que me salva sou eu e a minha família e os meus amigos e muitos desconhecidos que, acredito, enviam energias positivas para o universo. Adorava acreditar que salvo alguém mais. Gosto das pessoas. Quero que elas sejam felizes, com fé ou sem fé.