Incendiário. Porventura demasiado incendiário para Braga, "cidade pacata, provinciana e beata", onde vive. Adolfo Luxúria Canibal, 49 anos, consultor jurídico e vocalista dos Mão Morta, perde facilmente a cabeça em palco; fora dele, não tira os pés do chão. Parece esquizofrénico - não é. É só mais enfadonho - como a vida.
No liceu foi sempre o melhor aluno. Era bem comportado?
Não. A prerrogativa de ser bom aluno servia para desculpar o mau comportamento.
Era possível tratar um professor da forma que vimos numa escola do Porto?
Completamente impensável.
Castigaria o seu filho se ele fizesse alguma coisa vagamente aproximada?
Aquele comportamento é tão inconcebível que o meu filho nunca o faria. Foi instruído para isso.
Sócrates, o filósofo, já dizia que 'as crianças são tiranas', que 'a juventude é mal educada, zomba da autoridade'. Não mudou nada?
Nada. As crianças continuam absolutamente tiranas. Tem a ver com a sua indistinção do bem e do mal, com a sua visão egocêntrica do mundo.
Há quanto tempo é que 'nesta latrina o ar se tornou irrespirável'?
Ui, há muito tempo já. Acho que nunca foi respirável.
Portugal ainda é o país daquela Mirandela, em que um polícia parou de o pontapear quando soube que afinal também é doutor?
É efectivamente o país em que toda a gente gosta de ter títulos para mandar para a frente.
O vocalista dos Mão Morta e o advogado são tratados de forma diferente?
Não consigo distinguir um do outro. Mas sim, acho que o tratamento é diferenciado. Não sei qual será melhor [risos].
Ainda acha que, hoje, 'o perigo não vem do excesso de confiança no futuro, mas da falta de futuro'?
Claro! As pessoas têm enorme descrença no futuro. Isso acabrunha-as e limita-as.
Não há política ou político que nos salve?
Neste sistema político, não há políticos que nos salvem, não.
Sente-se o "narrador da decadência"?
Sou um colocador de questões.
Nick Cave regressa a Portugal em Abril. Ainda seria capaz de fazer a primeira parte do concerto de pijama?
O contexto em que isso aconteceu pode voltar a acontecer. A utilização do pijama tinha a ver com acordar estremunhado e isso continua a acontecer.
Tem saudades dos motins gerados nos seus concertos ou a idade não perdoa?
[risos] Não tenho saudades. Num olhar nostálgico, os motins podem tornar-se simpáticos ou até motivo de orgulho. Mas quando acontecem, não são simpáticos.
A eterna associação dos Mão Morta ao episódio de 1993, em que o público destruiu o o Theatro Circo, em Braga, já começa a ser cansativa?
Todas as associações que cristalizem uma imagem num acontecimento são entediantes porque são redutoras - e essa é perfeitamente entediante.
Tal como a das navalhadas com que se autoflagelou numa perna, num concerto há cerca de 20 anos?
Exactamente. É absurdo reduzir 22 anos a um concerto.
Mas sente que pisou o risco em palco?
Muitas vezes, sim.
Tem a ver com perder a noção do que está a fazer quando está lá em cima?
Com isso e com o facto de haver uma transfiguração completa do real, efeito da música e do palco.
A sua atitude já foi mais incendiária. Adolfo Luxúria Canibal é cada vez mais apenas Adolfo Morais Macedo?
Um nunca deixou de ser o outro. Sempre foi uno. Nunca houve esquizofrenia a esse nível.
Mas cria personagens. O homem que destila ódio é uma dessas personagens?
Crio personagens, é verdade. Mas isso não implica que um seja o Canibal e outro o Macedo. Não são esses que eu crio - são outros.
Na vida é mais enfadonho do que no palco?
Muito mais. Porque a vida é muito muito mais enfadonha do que a criação, o sonho.
Enfadonho a ponto de ficar chateado quando revelam que usou cuecas cor-se-rosa?
Não, isso não me chateia nada. Mas já fico chateado quando escrevem publicamente coisas que só a mim dizem respeito. Isso sim, deixa-me furioso. Corto relações.
Passou do encanto ao desencanto total com a renovação do Theatro Circo. Porquê?
Porque o ego político a sobrepôs-se à inteligência e transformou num elefante branco um projecto que poderia transformar Braga no pedestal que a cidade merece.